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Tem juízo, Joana!

Entre o certo e o errado, o perdido e o achado, o dito e o não dito, encontros e desencontros, da pequenez à plenitude, entre a moralidade e a indecência. Se tenho juízo? Prefiro perdê-lo…

Entre o certo e o errado, o perdido e o achado, o dito e o não dito, encontros e desencontros, da pequenez à plenitude, entre a moralidade e a indecência. Se tenho juízo? Prefiro perdê-lo…

10
Out24

Todas as personagens têm uma história (2)


Por baixo das peles que quase lhe fecham os olhos, vive um olho mel atento a tudo o que consegue ver. Nos seus pensamentos dançam conversas honestas de quem se quer expressar, mas a vasta experiência pede à língua um silêncio atinado.

Os dias somam-se, as noites dão que falar e o que deveria ser prazeroso no verbo envelhecer, é substituído pela dor de um verbo a quem chamam saudade. Os joelhos rangem como as velhas portas, as mãos mexem-se tortas lembrando os galhos das árvores e o coração… bate cansado de saudade dos tempos que vivia naquele mesmo corpo sem sequer dar conta.

No meio daquela algazarra de mais um Natal em casa de uma das suas filhas, Luísa permanece sentada no seu cadeirão. Já jantou o bacalhau, que estava em sonso, com couves mal cozidas. A sua Gabriela nunca teve jeito para a cozinha! Ainda assim, insiste em fazer o Natal em casa dela. “Valha-me Deus! Agora espero o arroz doce que fiz e que, mesmo sabendo que está ainda melhor do que o ano passado, vou-me fingir modesta e perguntar a todos se está bom de açúcar.”

As flores que dela floresceram deram-lhe o cabelo branco, uma audição mouca e um colo macio e despretensioso, onde os netos fazem sestas e as filhas procuram a compreensão.

Por trás dos seus lábios em forma de foice invertida, até aos cantos da boca a gravidade faz o seu trabalho, ria-se discretamente das traquinices dos netos. São só dois, “estas duas só quiseram ter um filho cada uma, antigamente paria-se como quem troca de roupa: rápido, sem frescura e já a pensar no próximo!“

Os genros tratavam-na delicadamente, e, apesar de a amarem como se da própria mãe se tratasse, quando lhe falam de amor é com um subtil desdém. “Os homens não foram educados a amar descaradamente… palermas! O meu amou-me tanto que até com amor me açoitava.”

Levantou-se do cadeirão, era hora da sobremesa, agarrou-se à sua bengala tigresa, não era uma bengala qualquer. Lá foi sentar-se à mesa, com dor naquele maldito joelho, recordação que levaria consigo para sempre da noite de verão em que o Zé decidiu chegar a casa chateado com pormenores e fraturou-lhe a rótula. Os pormenores nunca saberemos, a rótula ficou partida e o coração rachado, por um amor que nunca conseguiu compreender…

“Deus o tenha na paz do Senhor, amén.”

06
Out24

Todas as personagens têm uma história


O garfo, ela agarrava-o com a ponta dos dedos, numa delicadeza de porcelana. Comia de boca tão fechada que parecia nem respirar, ultimamente andava tão tensa e rígida que chegavam a ficar hirtos, mas arrumadíssimos, os pelos das sobrancelhas.

Escolheu, adivinhem? Uma salada César para o seu almoço entre a correria do seu dia. Não pode engordar! Como se a corrida do dia já não a emagrecesse que bastasse.

— Sandra, desculpe! Deixou cair o guardanapo. — o empregado apanha-o do chão e surpreendeu-se com os pés cruzados e dedos enrolados, como se fossem tímidos, fora dos sapatos altos da mulher que almoça todos os dias ali, e por quem ele nutre um carinho inexplicável. Tão inexplicável que se confundiria com uma paixão assolapada, de quem admira de forma obsessiva e orgulhosa uma mulher que mal conhece.

Quando a encarou com o guardanapo na mão, Sandra estava vermelha de vergonha. Tinha velhos hábitos para sair da pressão do seu trabalho: descalçar-se e prender o cabelo com a sua caneta sempre que comia; colocar os phones com a última chamada de voz da Camila, de há dois anos, em loop durante toda a refeição, não queria esquecer-se da sua voz; e, em forma de reza, perguntava ao universo “O que me resta?”. Estes eram os hábitos, repetidos todos os dias às refeições, sem excepção, desde que a sua noiva assassinada, partira para outra plataforma cósmica de energia.

Pediu um café curto em chávena fria e tirou da mala o seu último processo de acusação contra Luís Façanhas, o assassino mais famoso de Ermesinde e arredores. Há dois anos que Sandra desejava este caso. Calçou os seus saltos vermelhos, levantou-se imponente, num único gole bebeu o seu café, tirou a caneta, soltando o cabelo liso que lhe caia pelos ombros, com o guardanapo enxugou as lágrimas que não chegaram a cair, não podia esborratar a maquilhagem. Ia para o tribunal e tinha de se recompor. Estava obstinada a pôr o vagabundo atrás das grades, por amor à sua falecida noiva.

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