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Tem juízo, Joana!

Entre o certo e o errado, o perdido e o achado, o dito e o não dito, encontros e desencontros, da pequenez à plenitude, entre a moralidade e a indecência. Se tenho juízo? Prefiro perdê-lo…

Entre o certo e o errado, o perdido e o achado, o dito e o não dito, encontros e desencontros, da pequenez à plenitude, entre a moralidade e a indecência. Se tenho juízo? Prefiro perdê-lo…

06
Out24

Todas as personagens têm uma história


O garfo, ela agarrava-o com a ponta dos dedos, numa delicadeza de porcelana. Comia de boca tão fechada que parecia nem respirar, ultimamente andava tão tensa e rígida que chegavam a ficar hirtos, mas arrumadíssimos, os pelos das sobrancelhas.

Escolheu, adivinhem? Uma salada César para o seu almoço entre a correria do seu dia. Não pode engordar! Como se a corrida do dia já não a emagrecesse que bastasse.

— Sandra, desculpe! Deixou cair o guardanapo. — o empregado apanha-o do chão e surpreendeu-se com os pés cruzados e dedos enrolados, como se fossem tímidos, fora dos sapatos altos da mulher que almoça todos os dias ali, e por quem ele nutre um carinho inexplicável. Tão inexplicável que se confundiria com uma paixão assolapada, de quem admira de forma obsessiva e orgulhosa uma mulher que mal conhece.

Quando a encarou com o guardanapo na mão, Sandra estava vermelha de vergonha. Tinha velhos hábitos para sair da pressão do seu trabalho: descalçar-se e prender o cabelo com a sua caneta sempre que comia; colocar os phones com a última chamada de voz da Camila, de há dois anos, em loop durante toda a refeição, não queria esquecer-se da sua voz; e, em forma de reza, perguntava ao universo “O que me resta?”. Estes eram os hábitos, repetidos todos os dias às refeições, sem excepção, desde que a sua noiva assassinada, partira para outra plataforma cósmica de energia.

Pediu um café curto em chávena fria e tirou da mala o seu último processo de acusação contra Luís Façanhas, o assassino mais famoso de Ermesinde e arredores. Há dois anos que Sandra desejava este caso. Calçou os seus saltos vermelhos, levantou-se imponente, num único gole bebeu o seu café, tirou a caneta, soltando o cabelo liso que lhe caia pelos ombros, com o guardanapo enxugou as lágrimas que não chegaram a cair, não podia esborratar a maquilhagem. Ia para o tribunal e tinha de se recompor. Estava obstinada a pôr o vagabundo atrás das grades, por amor à sua falecida noiva.

22
Set24

Fome


 

Tenho muita fome. Dizem que o nosso corpo confunde fome com sede. Será que tenho sede? À procura de um copo de água, palpo a mesinha de cabeceira, não está lá. Que raio! Palpo do outro lado, também não está lá. Estou deitado, ainda com a camisa que usei no dia anterior, sinto-lhe os botões na barriga, mas não estou na cama. Abro os olhos, confuso e preocupado, onde raios estou?

Custava-me encarar o sol, era brilhante e tão quente que secava a saliva toda que pudesse existir na boca.

Tenho fome. A minha mãe costumava fazer-me um bitoque com ovo a cavalo, que chegou a ser dos meus pratos preferidos. Um certo dia, estava ela descontraída no seu emprego, recebe uma chamada do diretor da minha escola, a dizer que tinha pegado fogo à secretaria onde me sentava. Nesse dia, cheguei a casa e a minha mãe, que já tinha a refeição pronta, perguntou-me furiosa, com a sua voz esganiçada como as das hienas quando riem alto, o que tinha na cabeça para pegar fogo à secretária, que era perigoso. E assim que encolhi os ombros, por não ter resposta para tamanha estupidez, o ovo que era supostamente a cavalo, levei com ele na tromba.

Mas eu tenho fome e este prado onde estou, cheio de espigas e milho a saltar as barbas, nada tem que me apetece comer. A minha boca parece um cinzeiro, tantos foram os cigarros que fumei ontem. Joguei às cartas com o meu primo, como vim aqui parar? Rafael, o meu primo, adora uma boa suecada e mulheres. Tanto que já lançou o charme para cima da minha. Não levei a peito, mas agora que aqui estou sem saber como, paira-me no pensamento que talvez me tenha embebedado para se enrolar com a Marisa. Imagino-lhe os gemidos, os balanços das ancas, sempre me deixou louco toda aquela sensualidade crioula.

Nem uma toalha me deixou, o meu primo, tenho o corpo mesmo em cima destas espigas que me dão comichão!

Visualizo o horizonte vestido de nevoeiro, devo estar para trás dos montes do flaminguito, aquele rapaz dos negócios de chapeleiras. Muito dinheiro faz o rapaz! Eu comprei-lhe dois chapéus, uma vez. Um ofereci-o à Marisa, em caracol, com uma flor rosa e uma fita bege, ficou radiante e sempre o usara na praia do Alvor, com todas as estrangeiras a mirá-la. O outro foi para a Maria Helena, a pequena pediu-me um chapéu de fita amarela com várias flores coloridas, como a alma dela – colorida. Agora que pensava nela, enchiam-me os olhos de lágrimas. Saudade. Onde anda a minha menina? Agora, nos seus dezoitos anos de juventude, enamora-se com uma facilidade louca!

Sou velho e perco-me nos mil e um pensamentos… como vim aqui parar? Levanto-me com dificuldade, quem diria que já fui maratonista de medalha de bronze. Endireito as costas.

— Está aqui! Estás aqui! Vês o que acontece quando te deixo sozinho?— oiço ao fundo, uma voz familiar a aproximar-se. É bonitinha, com um sorriso primaveril. Como não sei quem é, dou-lhe um olá tímido, ela abraça-me, parece preocupada comigo. Traz um chapéu florido, de fita amarela. Sorriu-lhe, sei a origem daquele chapéu, por isso devo estar perto de casa.

— Vamos, pai!

25
Ago24

3 haikus e 1 história


As ondas enrolavam-se na areia,

Molhada como as noites húmidas de primavera

Eram dois, agora três talvez.

 

A barriga crescia-lhe, quiçá quatro!

A incerteza é o prelúdio das descobertas

Preferiram assim, espera de surpresas!

 

Águas, dor, águas, era março!

Afinal tal era o embaraço, que desabrochou

Era menino enrugado e chorou.

25
Ago24

Água, ar, fogo e terra — a Criação


 

No crepúsculo da criação, debaixo de uma lua semi-cheia, ouviam-se gemidos enfurecidos, choro compulsivo e gritos. Mexia-se com uma flexibilidade corrente, capaz de contorcer sólidos, como a água. À medida que se movimentava, exalava a água sanitária das fartas gotas de fluídos verdes. Ele estava mergulhado em secreções, corrimentos, sangue e ela em suor! As peles não eram macias, mas quentes e transpiradas, emanavam um fumo encarnado, em sibilos rápidos e intensos. Naquela meia gruta, os morcegos fugiam a cada eco agudo e mesmo lá fora, o jardim era um mar de flores quase em decomposição, com cada pétala embaciada pelas exalações furtivas da alma.

Trovejava naquela madrugada, as nuvens  eram impulsionadas por um vento velocista e barulhento. “Agacha-te, Beatriz!”, berrava o relâmpago no céu denso, dentro da sua mente de mil personalidades. A brisa fresca daquela noite arrepiava-se ao passar-lhe a pele ardente e continuava o seu caminho oscilante. “Não posso, tenho de esperar!” soprava entre dentes, vezes e vezes sem conta, talvez assim pairando a frase naquele ar concentrado e salgado, ela conseguisse acalmar a ansiedade que lhe tremia os dedos e a máscara que segurava no vazio. Atirou-a num sopro aquentado e desvendou a sua dor.

“Não posso, tenho de esperar!” voltou-se a inflamar pelas pedras gastas, num grito. Doía-lhe, doíam-lhe as vísceras, a alma, a carne, as memórias… Beatriz era agora o fogo de uma alma consumida pela ira da paixão, os seus cabelos eram chamas vigentes e ondeantes, nos seus olhos incendiavam-se os corações que beliscou antes de os dispensar. A dor voraz, impetuosa queimava-lhe a pele e a consciência, ateava-se nos trapos do seu coração e das suas mil Beatrizes, até virar cinzas e… silêncio.

Daquele prisma, Gusmão emergia das águas espirais da criação, uma massa que tocava pela primeira vez a Mãe e a Terra. O solo estável, perseverante e imóvel, abraçava com as suas raízes este ser ainda unido à genetriz. Naquele momento, a vida sorriu e uma luz, tal qual um novo dia, perfurou as folhas das árvores e iluminou aquele vale mágico. E assim, a festa dos elementos chegou ao seu apogeu, revelando o segredo escondido nas cores do arco-íris.

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