Não pari, mas vive uma criança em mim!
Vive em mim uma criança de olhos vivos, cheios de luz, e uma boca carnuda, ainda sem os dentes todos. Expressa-se através da minha forma de caminhar, do riso incontrolável que faz baloiçar os caracóis rebeldes. Anuncia-se pela capacidade de adaptação e do meu humor infantil. Ela alimenta-se do que me é recreio, criatividade e graça.
Na compreensão, na ingenuidade e na empatia, ela pula, canta e dança.
Vive em mim uma criança que perdoa fácil, de uma benevolência desmesurada, consciente, mas ingénua, que chega a ferir a própria pele. Ferimentos fundos que cicatrizam rapidamente, porque o esquecimento surge com uma facilidade mórbida. Tudo o que são dores, ela atulha-as num baú escondido nos escombros turvos das caves do cérebro, e deixa que ganhem bolor, até nada dessas memórias restar.
Então, anda nestas cambalhotas, cima a baixo, entre a mágoa e o reerguer, de tal maneira hábil, que vira brincadeira nas poças enlameadas da vida.
Sou cheia, tão cheia, dessa criança que fala a linguagem universal do amor. Envolvido pelos ossos do crânio está o seu coração e, mesmo assim, mostra-se vulnerável… Vê mais além do que ditam as regras, procura encontrar a aceitação da essência humana de cada um, às vezes para lá do bom senso. Aceitando, de tal forma natural, que lhe flui, num sangue quase transparente, o abrigo a todos os pecados do mundo.
Não tive nenhum parto, já que ela vive em mim, entre nascimentos, mortes e ressurreições. Que não me morra a criança! Nem a quero parir, para que ela prospere a sua nobreza pelas minhas vísceras adentro e que me regurgite a singeleza desta menina leoa de espírito leve.
———-
👉🏻 texto publicado no blog @valletibooks Reflexões nº 24 - 12/06/2022