A praxe dos vizinhos
Acordo com a vizinha de cima a estender roupa. A puxar as cordas nas roldanas enferrujadas para estender os seus lençóis que me tapam a vista, um chiar brusco, mete mola, outro chiar com mais suavidade, fecha janela. Tento voltar para a cama, mas os lençóis azuis com rosas bordadas da vizinha de cima, com o vento, fazem barulho a bater nos vidros da minha marquise.
São 10h, é infalível, já o oiço a tossir, a escarrar no lavatório, numa aflição rotineira para conseguir expelir todo o muco espesso acumulado durante a noite. Vai para o elevador e o escarranço continua. Aflitivo!
A vizinha do lado começa nas suas andanças, sai para ir ao pão, volta a entrar. Na sua voz esganiçada oiço-a chamar o cão “oh bebé! Seu bebé mais lindo!” e sai para passear o cão, volta a entrar e continua na sua voz esganiçada “oh bebé, quem foi passear, quem foi?”.
Entre as 13h e as 13h30 no 5º já se almoça, é um arrastar de cadeiras, como se lhes faltassem as forças para as levantar. Às 14h30 voltam a arrastar cadeiras, mas desta vez com o peso dos seus rabos nelas, prruuuuuummmm, prruuuuuuuuum…. Aposto que devem ter o chão riscado, com desenhos artísticos feitos pelo cu em 4 pés de cadeira.
Lá fora, trabalham os trolhas, falam uma linguagem que não consigo decifrar. Riem-se.
A vizinha do lado abarca criancinhas de quem toma conta. Na sua voz esganiçada, faz piadinhas, dá-lhes amor. As crianças não falam, não se ouvem, nos seus cérebros deve ecoar aquela voz que as traumatizará para o resto das suas vidas.
Fala ao telefone com as amigas, com a família, na sua voz esganiçada, já disse esganiçada não foi? hum… irritante. Fala as cusquices do bairro. Opina sobre o que sabe e o que não sabe. O marido mal se ouve.
Oiço o barulho de berbequins, onde estão as obras? Não consigo distinguir.
A meio da tarde, inicia a orquestra do cão da vizinha de baixo. Pelo ladrar, deve ser caniche. Um ladrar eufórico, de fazer pinguinhas p’ro chão. Fecha a porta. Ui, silêncio tão bom.
O comboio também é meu vizinho. Agora, passa de hora em hora.
Passam carros quitados. Rebaixados, jantes brilhantes, com as suas músicas, kizombas, funanas ou reggaetons em volumes assombrosos, de furar os tímpanos a quem lá vai dentro e de se fazerem ouvir dentro das casas em redor.
Olha, olha, oiço alguém a fazer xixi. Um xixi de homem. Claro, apontado à água como se de uma mangueira aberta directamente ao charco se tratasse.
Ah! Claro, 20h e os cus voltam-se a sentar nas cadeiras para dizerem aos vizinhos de baixo que vão sentar a peida à mesa para começar a encher o bandulho. Demoram cerca de 1h30. Tempo suficiente para encherem o reservatório para a noite fora.
Às 21h tenho sempre uma companhia à janela. Do outro lado da praceta. Aquela que fuma um cigarro depois de jantar. Conhece-me, eu sei que sim. Bebo um copo de vinho e brindo-lhe a presença. Aquela é silenciosa e faz-me companhia nas noites escuras.