A casa
Oiço o relógio da cozinha, o som de fundo a passar os segundos, este silêncio está carregado de ti e quase consigo ouvir-te falar. Não quero esquecer a tua voz.
Aqui ainda existe tempo, o dos relógios. Os de pulso até então perduram. Mas tu não. Esta casa vazia respira a ti em cada canto, vives neste som, o dos segundos, mesmo quando o teu tempo já acabou.
Guardas-te as nossas fotografias com intenção de estares na minha presença, hoje, guardo-tas eu, para poder viver a tua memória nelas.
Deixaste-me as nozes e o doce de abóbora que como demoradamente. Não quero que acabem os haveres de ti.
Uso o teu champô, só para poder desfrutar de bocadinhos do cheiro que cá deixaste. Também o economizo.
Eu sei que estás aqui comigo. Mas dói! Dói-me muito a certeza de não te poder ver mais. E meto-a num bolso lá distante, porque prefiro viver no sonho onde tu ainda estás aqui à minha espera. Mas quando meto a mão ao bolso e tiro de lá a certeza… ai Avó! O meu mundo arruina-se, como se fosse a primeira vez.
Levo daqui tudo o que de ti posso levar, encho a minha casa de coisas outrora tuas, a fim de te demorares comigo. Não te quero apagar dos meus dias.
Sinto que ainda existes nesta casa, mesmo já não estando alguns dos teus pertences. O teu cheiro, as coisas do teu modo, o ambiente ainda é o teu, sabes… é como se esta atmosfera te tivesse engolido e vivesses dentro dela, em cada canto, até em cada puxador. E eu? Eu só quero ficar aqui para te sentir mais um pouco no meu dia… para também eu ser engolida e dentro da atmosfera me possa encontrar contigo.
Estas paredes têm a tua força, a tua resiliência… e no recheio ficou o conforto, que sentias nos dias que aqui passavas. Consigo incorporá-lo, quase para te tocar…
Custa-me desapegar deste pedaço de ti, não imaginas o quanto eu gosto de estar aqui contigo. Nesta forma estranha de te sentir e de estar no teu embalo…
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