O mundo invertido
Prisão era o seu nome. Ela caminhava incerta pelo mar das algas, onde a escuridão se chamava dia. caminhava e caminhava, até que encontrou uma estrela caída no chão, tocou-lhe com o pé:
— Estrela! De que céu caíste?
— Ahm? — meio entorpecida, sem abrir os olhos — deixa-me! Tira o pé de cima de mim e segue caminho!
Prisão estava pasmada por encontrar estrelas no seu caminho, não era habitual as estrelas caírem durante o dia, apenas de noite, quando o sol se levantava.
— Como vieste aqui parar estrela? — impaciente com os mãos na cintura e a bater o pé no chão — é de dia, está escuro como o branco, branquíssimo e tu caíste de onde?
— Primeiro, diz-me o teu nome!
— Prisão!
— Grrr, o teu pai estava bem ciente do que aí vinha quando te pariu! — comenta com desdém — Prisão… eu desci ontem pelo dia.
— Desceste? Mas tu podes descer quando queres? Pensei que só caíssem por acidente no mar.
— Desci, sim! — levanta-se e sacode o mar dos ouvidos.
Prisão queria saber mais acerca deste mistério. Desapertou as botas e sentou-se junto à onda onde se embrulhou a estrela.
— Descer é algo muito perigoso e exigente. Porque haverias de querer fazer isso? — pergunta a Prisão, intrigada com o que a estrela tinha feito.
— Oh! E achas que eu não sei? Desci para matar uma coisa que me cresce por dentro.
— Matar?!?
— Sim, matar! Ouve Prisão, não me apetece falar. Tenho muito que caminhar, com licença!
Prisão estava curiosa, mas deixou-a ir… ou, pelo menos, fingiu.
Viu-a contornar uma onda e outra, virou à esquerda na esquina de areia. Caminhou e caminhou por entre as casas silenciosas naquele dia longo, enquanto as pessoas ocupavam-se a trabalhar nos seus sonhos.
Subitamente, a estrela pára em frente a uma janela no andar de cima da casa número 51. Prisão fica um quarteirão atrás a observar tudo. A estrela ficou simplesmente ali, horas e horas, até se fazer noite e o sol nascer. Nessa altura, agarrou nos seus véus e subiu a toda a velocidade para o céu azul turquesa.
Prisão não estava a entender, a estrela não matou ninguém e foi-se embora. Aproximou-se da janela e não viu nada morto. “Como assim veio matar?” — indagou-se, olhou para o céu e gritou a mesma frase que tinha pensado.
— Prisão, matei mais um pouco da saudade! — responde-lhe a estrela com a emoção na voz.
Ainda confusa com a situação, voltou a olhar pela janela do 51. Prisão conhecia bem a Saudade, vi-a todos os dias com o seu semblante meio triste, meio nostálgica a latejar pelos mares da esperança. Era famosa por estes lados, mas nunca Prisão pensara que também as estrelas a conhecessem. “Matar mais um pouco” refletiu no que a estrela lhe dissera, “não é matar completamente!”, pensou. “Matar mais um pouco”, voltou a repetir, “será tortura?”.
Na janela via-se uma moça a dar mama a um bebé. Prisão ficou ali, parada diante da janela, observando a mulher que embalava o bebé. O silêncio era espesso, pesado como as noites de sol ardente. As palavras da estrela ainda ecoavam na sua cabeça: “Matei mais um pouco da saudade.”
Mas a Saudade não morria assim, morria? Se morresse, não renasceria a cada batida do coração?
Prisão levantou os olhos para o céu, a estrela ainda espreitava, brilhando num azul tão profundo que parecia um oceano invertido.
— Mas tu não a mataste! — gritou.
A estrela sorriu, com um brilho de mistério no olhar.
— Não, Prisão. A saudade nunca morre. Mas cada vez que a visito, ela dói um pouco menos.
Prisão sentiu um arrepio, algo novo a despontar dentro dela. Sempre pensara que tudo o que existia era para ser quebrado, destruído ou encerrado. Mas a estrela não queria apagar a saudade, apenas aprender a viver com ela, a torná-la mais leve.
A mulher dentro da casa beijou a testa do bebé e, por um instante, pareceu olhar diretamente para Prisão. Mas não a via, via apenas algo dentro de si mesma — uma lembrança, um nome, um amor que um dia partira para as estrelas.
A estrela começou a subir mais alto, os véus de luz dançando ao seu redor. Antes de desaparecer por completo, lançou um último brilho para a Prisão e sussurrou:
— Da próxima vez, talvez a mate mais um pouco. Ou talvez, apenas aprenda a amar o que ficou.
E então, como um sopro na noite de sol, desapareceu no céu.