Um conto infantil
Na cozinha virada do avesso, estava ela a preparar das suas… era o hábito! Acordava, arranjava-se e ia preparar refeições mágicas.
Aquela era a assoalhada com mais artefactos a voar, temperos dançantes, utensílios cantores… uma desarrumação engraçada! Chamavam-na bruxa da cozinha, porque fazia refeições com poções mágicas que resolviam problemas.
Arroz de pato feliz, para dar a quem estivesse triste; Bacalhau à gomes sábio, oferecia sabedoria a quem o degustasse; francesinha marota, fazia rir quem a pusesse na boca; curanzido à portuguesa para curar os enfermos; entre outros…
Cozinhava-os auxiliada pelo fantasma do saco - amigo de infância e funcionário naquela cozinha há mais de 20 anos a assustar temperos.
Certo dia bateu-lhe à porta Aurora, a lagartixa:
— Sra. Bruxa da cozinha, estou perdida! Preciso de uma refeição rica em sei lá o quê para que me possa encontrar! Não sei quem sou! — choramingava a lagartixa, vizinha do segundo direito.
— Querida, não tenho prato que te possa ajudar… — respondeu-lhe a bruxa esfregando o queixo à procura de soluções. — Oh Gustavo! — chamou o fantasma — Como podemos ajudar a Aurora?
O fantasma ficou pasmado com o aspecto triste e sem cor da lagartixa… começou a olhar os temperos da bruxa e gritou:
— Uma mistura de pratos?!
A bruxa, num salto, lembrou-se da receita antiga guardada há gerações no seu livro de receitas mágico! Aproximou-se dele e abriu no separador dourado que nunca deixava ninguém tocar, nem mesmo o Gustavo, por quem sentia enorme amizade.
— Roupa velha… — palreou entre dentes a bruxa — roupa velha…
— O quê? — perguntou o Gustavo, mandando entrar a Aurora para se sentar à mesa.
— O prato mais difícil de fazer e mais antigo de todos os tempos! — cantarolou bruxa.
Num tacho começou a atirar os ingredientes lá para dentro e a cantar orações que ninguém compreendia. Gustavo e Aurora observavam-na surpresos com a genica da velha bruxa.
— Bruxa, mais devagar que ainda te cansas! — pedia o Gustavo preocupado com a sua amiga e patroa. - Mas afinal, que ingredientes mágicos tem a roupa velha?
A bruxa concentrada, foi-lhe respondendo à medida que ia cozinhando:
— Aqui, neste tacho, vou por autoestima aos cubos, um quilo de amor-próprio cozinhado em lume brando, juntamente com tolerância, até deixar lourar… depois… — continua, a tentar lembrar-se do que aprendera em miúda com a sua avó bruxa — depois acompanhamos com quatrocentos e cinquenta gramas de empatia, marinada num litro de compaixão. Ah! E… falta-me… — a bruxa tentava recordar-se — o ingrediente mais importante… é… é… ah! Cá está! Adicionam-se os temperos com uma pitada de fé!
Aurora e o Gustavo observavam-na incrédulos, o cheiro que pairava era fantástico e formava-se um arco-íris por cima do tacho.
Terminado o cozinhado, deu-o de comer à lagartixa. Ela lambuzou-se, repetiu e ainda lambeu a fé que lhe sobrava nos dedos.
Minutos depois, a lagartixa começou a ganhar cor, declamava poesia enquanto agitava a cauda feliz e os olhos brilhavam de amor.