As recordações que ficam
Saiu de casa ainda a vestir o casaco e o cachecol, levava as chaves de casa no dedo mindinho e as do carro no anelar. Na outra mão o café e ao ombro a mala toda escancarada. A casa da Sara era na periferia da cidade, mas a poucos minutos do centro, se não houvesse trânsito.
Tinha tirado folga, deixou-se estar na cama até mais tarde, pois não queria atravessar a cidade cheia de carros enfurecidos.
Ao som de Otis Redding, Sara percorreu o seu caminho, cantarolando. Era a música apropriada ao dia que a fazia recordar, reviver e sentir novamente o conforto outrora sentido.
Estacionou o carro e retirou da mala o seu velho livro de contos infantis. Com o cachecol a prender-lhe os cabelos encaracolados, abraçou o livro no colo e subiu a ladeira. Olhou o grande pinheiro, suspirou e lá se sentou. Fechou os olhos e pousou as mãos na terra húmida. Era um dia triste!
Ao fim de três anos, o sabor ainda era o mesmo. Um gosto azedo melancólico cheio de saudade, sofrimento e angústia.
Abriu o livro e começou a lê-lo em voz alta, como o Avô lhe fazia desde pequena. Sara sabia de cor todas as histórias, permaneciam-lhe na memória todas as entoações que ele dava às falas, as vozes estranhas que imitavam tartarugas, coelhos e lobos. Mas, Sara recordava, em particular e com maior ternura, as gargalhadas, os beliscões no nariz e os cafunés.
O avô Francisco vivia agora ali, junto àquele pinheiro, onde, durante anos, contou as mais hilariantes histórias à sua neta, que o ouvia com entusiasmo e um brilho especial nos seus olhos verdes esmeralda.
Aquele era um sítio saturado de lembranças, onde Sara, há 3 anos atrás, enterrou as lágrimas e a adaga de coleção do avô. Prometeu-lhe em oração plantar naquele solo húmido uma homenagem à sua existência.
E chorou de saudade. Uma amargura que lhe fazia arder o peito, sobretudo pela despedida efémera de dois minutos no telefone da enfermeira. Graças à COVID, a Sara e ao seu Avô fruíram de um adeus penoso.